Você conhece o Caio Fernando Abreu?
O da internet? Claro que sim!
Bem, mais ou menos. Não é bem o “da internet”, mas pode ser.
Eu fui apresentada ao Sr. Caio Fernando Abreu na faculdade durante a
minha primeira prova de Teoria da Narrativa (com um dos professores mais
inteligentes que eu já conheci nessa minha vidinha mais ou menos). A proposta
era simples: ler, interpretar e dissertar sobre um conto aleatório, escolhido
pelo professor. Para quem não é de Letras e talvez a ironia não tenha ficado
clara, não isso não é nem um pouco simples. Foi a prova mais difícil da minha
trajetória universitária.
O conto que me foi dado era o “Creme de Alface”, do nosso ciber-amigo
Caio Fernando Abreu. Eu sei que já faz um tempo que as pessoas pararam de
atribuir toda e qualquer frase do mundo a ele (ou a Clarice, coitados), mas
como ele fez parte deste meu momento histórico, não me esqueço, de jeito
maneira. Até porque na internet as coisas andam em uma velocidade que eu não consigo acompanhar no meu ritmo slow motion.
Bom, cá está o conto, leia. É grande, eu sei, mas é extasiante e
envolvente. Leia e me conte depois se você também não sentiu a confusão, o agito, a raiva e todos os sentimentos tão bem retratados no texto. Um dos melhores que eu já li, não para a minha
prova, mas tudo bem, agora já foi.
Creme
de Alface
Caio
Fernando de Abreu
Enfim,
enumerou na esquina, Raul se enforcara no banheiro, cinco anos exatos amanhã, e
este maldito velho com passinho de tartaruga bem na minha frente, eu tenho
pressa, quero gritar que tenho muita pressa, Lucinda quebrou as duas pernas
atropelada por um corcel azul três dias depois de Martinha confessar que estava
grávida de três meses, e não quer casar, a putinha, desculpe, mas o senhor não
quer deixar eu passar? tenho pressa, meu senhor, o telegrama, a putinha, crispou
as mãos de unhas vermelhas pintadas na alça da bolsa, pivetes imundos, tinham
que matar todos, venha urgente, ir como com aquele desconto de trinta por cento
no salário e todos os crediários, papai muito mal pt., apoiou-se, não, não se
apoiou, não havia onde se apoiar, apenas pensou no apoio de alguma coisa sólida
que não estava ali, havia só os corpos, centenas deles indo e vindo pela
avenida, ela roçando contra as carnes suadas, sujas, as gosmas nas lentes dos
óculos, como se não bastasse a tia Luiza agora que nem criancinha, mijando nas
calças, brincando de boneca, dá licença, minha senhora, tenho seis crediários
para pagar ainda hoje sem falta, aqueles jornais cheios de horrores, aqueles
negrinhos gritando loterias, porcarias, aquele barulho das britadeiras furando
o concreto, naquele dia, a fumaça negra dos ônibus e eu de blusa branca, a
idiota, introduzindo devagar a chave na porta do apartamento de Arthur, buquê
de crisântemos na outra mão, uma hora tão inesperada, e tão inesperados os
crisântemos, a senhora não vai andar mesmo?...
O
sinal já abriu faz horas, só uma cretina seria capaz de trazer duas crianças ao
centro da cidade a esta hora, ele jamais poderia imaginar, o ruído leve da
chave abrindo a porta, animal, por que não olha onde pisa? atravessar a sala na
ponta dos pés, abrir a porta do quarto e de repente a bunda nua de Arthur
subindo e descendo sobre o par de coxas escancaradas da empregadinha, meu deus,
mulatinha ordinária, se pelo menos fosse uma profissional, eu podia entender,
vomitou no elevador sobre os crisântemos amarelos, não, não sei onde é Casa
Oriente, pergunte para o guarda, agora ele vai morrer, será castigo? câncer no
baço, nunca mais seu cheiro de cavalo limpo, nunca mais o peso e os pêlos de
seu peito sobre meus seios quase murchos, a putinha, a mulatinha vadia, por
cima este calor absurdo em pleno inverno, o eixo da Terra, dizem, a estufa, o
ozônio, tudo um horror, em dez anos estaremos todos surdos, cegos, envenenados,
as lãs do começo do dia vertendo suores entre as pernas, como é que uma gorda
dessas pode sair à rua ao lado de outra gorda ainda mais larga? fazem de tudo
para atravancar o movimento alheio, se pelo menos tivessem avisado a gente,
você não vai me vencer, ouviu bem sua vida de merda? eu vou ganhar de você no
braço na raça e quem se meter no meu caminho eu mato, sem falar no Marquinhos o
tempo todo enfiando aquelas coisas nas veias, roubando coisas pra comprar a
droga, e sou eu sozinha quem carrega todo esse peso nas costas, isso ninguém
percebe, ninguém valoriza, não, eu não nasci para viver neste tempo, sensível
demais, no colégio já diziam, certo talento pra dança, eu tinha, e a Lia
Augusta agora querendo ser modelo, fortunas naquelas fotos, não tenho nada com
isso mas falei assim pra Iolanda, bem na cara dela: é tudo puta, o senhor por
favor poderia fazer o obséquio de tirar o cotovelo da minha barriga? porque
precisa ser super humana, vocês estão me entendendo, seus porcos, boiada,
manada, desviou com nojo do velho, a pústula exposta, vai pedir dinheiro na
Secretaria da Fazenda, já cansei de dizer que mendigo é problema social, não
pessoal, a cadela da Rosemari bebendo cada vez mais, meio litro de uísque até o
meio dia, depressão, ela diz, no meu tempo isso tinha outro nome, pouca
vergonha era como se chamava, este fio fino de arame atravessado na minha
testa, de têmpora a têmpora, vibrando sem parar, é preciso sim ser biônica
atômica supersônica eletrônica, vocês pensam que eu sou de ferro?
Quando
ia começar a rir alto parada na esquina, viu a bilheteria do cinema, a franja
de Jane Fonda, imaginou a temperatura amena, o escuro macio na medida exata
entre o seco e o úmido e pelo menos, decidiu olhando o relógio, ainda dá tempo,
os crediários podem esperar, pelo menos duas horas santas limpas boas de uma
outra vida que não a minha, a tua, a dela, a nossa, uma vida em que tudo
termina bem.
Foi
então que a menina segurou seu braço pedindo um troquinho pelo amor de deus pro
meu irmãozinho que tá no hospital desenganado, pra minha mãezinha que tá na
cama entrevada, tia. Ela disse não tenho, crispando as unhas vermelhas na alça
da bolsa enquanto puxava a entrada do outro lado do vidro da bilheteria. A
menina insistia só um troquinho pro meu irmãozinho e pra minha mãezinha, moça
bonita, e tão perfumada. Ela repetiu não tenho e de novo não tenho, mas a
menina olhava o troco pedindo cinqüenta centavinhos, uma tia tão bonita, eu tô
com tanta fome e o meu irmãozinho desenganado no hospital e a minha mãezinha
entrevada em casa, eu que cuido. Ela gritou não tenho porra, e foi tentando
andar em direção à porta do cinema, não me enche o saco, caralho, em volta os
outros olhavam, e não me chama de tia, mas a menina não largava seu braço.
Assim:
Assim:
ela segurando com força a alça da bolsa fechada enquanto tentava andar, e sem querer
arrastando a menina que não parava de pedir. Ela sacudiu com força o braço como
quem quer se livrar de um bicho, uma coisa suja grudada, enleada, e foi então
que a menina cravou fundo as unhas no seu braço e gritou bem alto, todo mundo
ouvindo apesar do barulho dos carros, dos ônibus, dos camelôs, das britadeiras,
a menina gritou: sua puta sua vaca sua rica fudida lazarenta vai morrer toda
podre.
Tão
exato, subitamente. Inesperado, perfeito. Mais contração que gesto. Mais
reflexo que movimento. Como um passo de dança ensaiado, repetido, estudado. E
executado agora, em plenitude.
Ela
ergueu a perna direita e, com o joelho, pelo estômago, jogou a menina contra a
parede. A menina escorregou gritando cadela filha da puta rica nojenta vai
morrer toda podre. Mas tantos carros passando e tanto barulho mas tanto,
justificaria depois, à noite, na mesa do jantar, bem natural, servindo a sopa
ainda não decidira se de ervilhas ou de aspargos, sabem, hoje me aconteceu uma
coisa que, tudo vibrando tanto, tudo girando tanto, tudo se movendo tanto, esse
arame atravessado na minha testa, uma coroa de espinhos. Certeira, com a ponta
fina da bota acertou várias vezes as pernas da menina caída. Alonga e contrai e
bate e volta e alonga e contrai e bate e volta: exatamente como numa dança,
certo talento, todos diziam.
Mas não esperou pelo sangue. Afastou as pessoas em volta com os cotovelos, só o tempo de comprar um pacote de pipocas, para afundar naquele escuro exato, nem úmido nem seco, em tempo ainda de ver no espelho da sala de espera uma cara de mulher quase moça, cabelos empastados de suor, roxas olheiras fundas e mãos de unhas vermelhas pintadas crispadas com força na alça da bolsa.
Mas não esperou pelo sangue. Afastou as pessoas em volta com os cotovelos, só o tempo de comprar um pacote de pipocas, para afundar naquele escuro exato, nem úmido nem seco, em tempo ainda de ver no espelho da sala de espera uma cara de mulher quase moça, cabelos empastados de suor, roxas olheiras fundas e mãos de unhas vermelhas pintadas crispadas com força na alça da bolsa.
Quase
uma assassina, não pensou, meu deus, quase uma criminosa, espalhando-se sem
horror na poltrona no momento em que as luzes começavam a diminuir. Apertou a
bolsa no colo, puxou com as unhas, para baixo, a gola alta arranhando o
pescoço, cheiro meu de bicho eu brotando do meio dos meus seios quase murchos,
seis crediários e esse dinheiro por um filme que nem sei direito, Arthur deve
estar morrendo mais um pouco agora, os cabelos finos e frágeis da
quimioterapia. Ah, se enforcar feito Raul, se deixar atropelar igual Lucinda,
regredir como tia Luiza, emprenhar que nem Martinha, trair como Arthur, se
drogar igual Marquinhos, beber feito Rosemari, virar puta que nem Lia Augusta:
biônica atômica supersônica eletrônica catatônica o dia inteiro no canto do
pátio, enrolando no dedo um fio de cabelo ensebado, os outros mijando e cagando
em cima dela, a pia cheia de louça de três meses, lesmas, musgos, visgos,
deixar apodrecer a vida como a vida deixou apodrecer o coração, não, não nasci
para este mundo, a bunda nua subindo e descendo sobre um par de coxas alheias,
ainda por cima mulatas, nunca mais e eu de blusa branca e com crisântemos
amarelos, puta fudida, cadela escrota, ai que vou morrer toda podre por dentro,
por fora.
O
bico da bota ardia querendo mais, cinco anos no fundo de uma cama, e de repente
o contato do joelho quente de uma perna estendendo-se da poltrona ao lado,
tentou prestar atenção nas imagens, a silhueta das cabeças, meu deus, que boca
tem a Jane Fonda, pensou em mudar de lugar, mas tão cansada, um oceano de paz,
e antes de decidir arriscou um olho para o nariz poderoso do macho ao lado
desenhado no escuro a seu lado, e suspirou mole, por que não, ninguém vai
saber, cadela gorda no cio afundada cada vez mais na poltrona, a boca cheia de
pipocas.
Pouco
antes de abrir as pernas deixando os dedos dele subirem pelas coxas, bem
devagar, para não assustá-lo, ainda esfregou as palmas secas das mãos uma
contra a outra, tão ásperas, o espelho da sala de espera, uma lixa, que pele
meu deus tem a Jane Fonda, o lixo das ruas e o roxo das olheiras tão fundas,
mas tão fundas pensou acariciando o rosto enquanto um dedo dele entrava mais
fundo, tão fundas que resolveu, eu mereço, danem-se os crediários, custe o que
custar saindo daqui vou comprar imediatamente um bom creme de alface.
:-! :-V o_O :-I :-*
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